Vício ao alcance das mãos: uso abusivo infanto-juvenil de celulares
As novas tecnologias, como smartphones, tablets e outros dispositivos digitais móveis, provocaram a incorporação de uma nova palavra ao léxico especializado: nomofobia. O termo se refere ao uso exacerbado e dependente do celular e de outras tecnologias digitais. Desde 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a dependência digital como transtorno: ela desencadeia um medo irracional de estar sem o celular ou sem aparelhos eletrônicos no geral.
A doença está listada na chamada Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Nos Estados Unidos, pesquisa realizada pela Common Sense Media trouxe resultados alarmantes: metade dos adolescentes se sentem viciados em usar o celular. Na UFMG, alguns estudos avaliam as consequências do vício em celular. Um deles foi realizado pela psiquiatra Júlia Cury, que se dedicou no mestrado, no doutorado e no pós-doutorado a compreender a dependência digital.
Especialista no tema, Júlia Cury ensina como identificar crianças e adolescentes viciados no celular: “A criança ou adolescente aumenta cada vez mais o seu tempo de exposição. O tempo gasto nas telas impede a realização ou diminui a realização de outras atividades, principalmente aquelas de que gostava e que são incompatíveis com o smartphone, como esportes e o contato com a natureza. Além disso, a pessoa pode alterar o comportamento. Uma criança que era tranquila começa a ficar agressiva. Uma criança que interagia bem começa a ficar mais introspectiva e deixa de interagir com as pessoas”, explica a pesquisadora.
Além disso, a psiquiatra afirma que o uso abusivo de celular afeta outras áreas: “Reduz as amizades e prejudica os relacionamentos, inclusive com a família. E começa a prejudicar outras atividades, como o rendimento escolar, o rendimento acadêmico no trabalho, para aqueles que trabalham. E na hora que a criança ou o adolescente se afastam da tela, eles têm abstinência, que é uma ansiedade, uma disforia, uma irritação muito grande que só melhora quando volta a ter contato com as telas e que se parece muito com a síndrome de abstinência de outras drogas ou com outros comportamentos que causam vício”.
Ainda na UFMG, a terapeuta ocupacional e doutora em Medicina Molecular Renata Santos estudou as associações entre tempo de tela e saúde mental. Ela também indica como perceber a nomofobia infantojuvenil: “Ela aparece quando começa a atrapalhar as outras atividades, quando começam os atrasos na entrega de tarefas de casa e da escola. As crianças também começam a mentir sobre a quantidade de tempo que passam no celular. Elas não acham nada mais interessante do que ficar no celular. Elas se sentem às vezes frustradas e tristes quando não podem usar. Elas precisam ficar cada vez mais tempo para poder satisfazer suas necessidades. E a gente percebe que elas têm fracassado nas tentativas de diminuir o uso”.
Danos ao desenvolvimento cerebral
Estudo realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) identificou 25% dos adolescentes brasileiros viciados em acessar a internet, por meio de diversos dispositivos. No Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da USP, é comum a chegada da população infantojuvenil viciada em celular. Neuropediatra do Hospital, Letícia Sampaio alerta que o uso de celulares e outras telas por crianças e adolescentes pode comprometer o desenvolvimento cerebral. A médica explica como o cérebro dos pequenos se desenvolvem: “É um processo contínuo e dinâmico, que vai desde o nascimento até o início da vida adulta. Durante os primeiros anos de vida, o cérebro vai passar por um crescimento rápido com formação de conexões neurais essenciais. Isso inclui o desenvolvimento de habilidades básicas, como a linguagem e a coordenação motora. Até por volta dos seis anos, também ocorre um processo de desenvolvimento intenso das áreas responsáveis pela linguagem e as habilidades motoras mais finas. E na adolescência, há uma reorganização significativa do cérebro, principalmente nas áreas associadas ao controle dos impulsos e tomada de decisões. As emoções e o julgamento social representam um período muito importante para o desenvolvimento das habilidades cognitivas superiores e para a maturação do córtex pré frontal”.
O córtex pré-frontal é a região do cérebro responsável pelo planejamento, tomada de decisões, autocontrole e regulação emocional, que pode não estar completamente desenvolvido até os 20 anos ou mais tarde. Em geral, de acordo com o campo da neuropediatria, os celulares estimulam vias de processamento cerebral passivas. O tempo excessivo durante o qual crianças e adolescentes passam diante de telas é um tempo em que deveriam ser estimuladas pelas vias ativas. O ideal é praticar atividades para desenvolvimento da coordenação motora, da comunicação, da resolução de problemas e da sociabilidade, claro, de maneira offline.
Um cuidado especial deve ser tomado com as recompensas fáceis que as redes sociais ofertam ao córtex pré-frontal, prejudicando o desenvolvimento de uma região cerebral controladora de impulsos, atenção, julgamentos e tomada de decisão. Apesar de tanto se falar em vício em celular, muitos pais ainda duvidam que o dispositivo e outros eletrônicos possam viciar. A neuropediatra Letícia Sampaio responde: o cérebro infantojuvenil pode mesmo se viciar no uso de celular e demais telas? “Sim, a dependência digital ou o vício em tecnologia existe. Quando se está interagindo com um dispositivo eletrônico, muitas vezes, se tem como recompensa uma gratificação imediata, ou através dos jogos ou das redes sociais, dos vídeos ou de alguma forma de entretenimento. Então, isso leva a um ciclo de recompensa que vai estimular cada vez mais o uso contínuo dos aplicativos desses conteúdos digitais. Eles são projetados para ser envolventes e estimulantes, o que leva a um comportamento mais compulsivo. Aquela necessidade de verificar toda hora o telefone que a pessoa não pode ficar offline nem um minuto, tem medo de perder algo que seja importante nas redes sociais”.
Série de reportagens
Os números evidenciam o uso abusivo dos smartphones por crianças e adolescentes no Brasil: 61% dos bebês até três anos de idade têm acesso a smartphones e 12% deles são donas do próprio aparelho. Além disso, 95% das crianças entre 10 e 12 anos de idade têm algum tipo de acesso ao celular. Os dados são da Opinion Box.
Diante das repercussões físicas, mentais e sociais provocadas pelo vício infantojuvenil em celular, a Rádio UFMG Educativa produziu uma série de reportagens sobre o tema. Também disponível no Spotify, no formato de podcast, a produção especial Vício ao alcance das mãos: uso abusivo de celular por crianças e adolescentes debate, em três episódios, as causas, as consequências e como superar a nomofobia entre os pequenos.
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