Violência fecha escolas e interrompe aulas em 93 de 100 dias no Rio

Veículo: Folha de S. Paulo - SP
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"As balas perdidas também estão invadindo as escolas do Rio". "Ameaçadas, escolas fecham". "Estudantes ficam feridos em decorrência de um tiroteio". Os títulos são de reportagens da Folha de S.Paulo de 1996, 2003 e 2006, mas se enquadram no cenário de 2017, diante do recrudescimento da violência na cidade.

De 100 dias letivos deste ano, em 93 as aulas na rede municipal do Rio acabaram interrompidas em pelo menos uma escola, segundo a Secretaria de Educação, em razão de casos de violência. São episódios em que algum colégio não abriu ou suspendeu as atividades no meio.

Ao todo, 381 escolas (25% da rede municipal) ficaram sem aulas em algum dia do ano devido a tiroteios que ocorriam por perto. O resultado: 129 mil crianças afetadas.

Foi o caso de Thayanne Galati, 13, durante toda a semana passada. Ela estuda na Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, na zona norte, bairro onde a educação foi mais afetada na cidade neste ano.

Thayanne era amiga de Maria Eduarda da Conceição, 13, que morreu baleada no pátio durante troca de tiros entre policiais e traficantes.

"Tem tanto tiro que até demorou para morrer gente na escola", diz a mãe de Thayanne, Viviane Galati, 30, que tenta, sem sucesso, transferir a filha para outra unidade. Segundo ela, se houver possibilidade, todos os alunos da Daniel Piza evadirão. Até agora, 76 já deixaram essa escola.

"Eu digo para as minhas professoras que a gente tem que se dedicar como se cada dia fosse o último. Não sabemos se vamos poder dar aula no dia seguinte", afirma Isadora Souza, diretora da Nova Holanda, no Complexo da Maré, que ocupa o segundo lugar no ranking de regiões onde a educação foi mais afetada pela violência.

As duas áreas têm em comum o fato de serem controladas por mais de uma facção criminosa e serem palco frequente de operações policiais.

A região onde fica Acari é uma das mais violentas da cidade. Engloba os morros do Chapadão, do Gogó da Ema e da Pedreira, cada uma controlada por uma facção criminosa diferente (Terceiro Comando Puro, Comando Vermelho e Amigos dos Amigos), que tentam invadir os territórios umas das outras. Tem também o batalhão policial que ocupa o topo do ranking de homicídios em supostos confrontos com a polícia.

Com um buraco de R$ 21 bilhões nos cofres do Estado, o Rio vive desmonte da política de segurança pública.

Não há recursos para contratar PMs aprovados em concurso. Policiais não receberam o 13º salário de 2016 nem o adicional por atingir metas e pelo trabalho na Olimpíada. A corporação denuncia o mau estado de equipamentos.

A política de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) ruiu -um estudo da PM aponta que houve 13 confrontos em lugares com UPP em 2011, contra 1.555 em 2016.

Nesse vácuo, tornaram-se mais frequentes confrontos entre os próprios grupos criminosos, o que, por sua vez, também atrai a polícia e provoca novos embates.

Concentração

Além de matar e ferir, a violência tem impactos que não se percebe de imediato.

"Estudos mostram que a capacidade de concentração da criança antes e depois de um conflito é totalmente diferente. Há consequências reais para o desenvolvimento das habilidades e para a capacidade de aprendizagem", diz Bárbara Barbosa, pesquisadora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e uma das autoras de pesquisa da instituição que cruzou dados de violência com a localização das creches na cidade do Rio.

Em entrevista à Folha em 2015, o professor Brian Perkins, diretor do programa de Liderança em Educação Urbana da Universidade de Columbia, nos EUA, explicou o impacto fisiológico da violência nas crianças.

"Quando a adrenalina entra no sistema, faz o córtex cerebral se desligar. É a parte mais primitiva do cérebro que passa a receber a maior parte das ondas cerebrais. Não é possível processar informações com essa parte. A linguagem, as habilidades processuais e analíticas todas ocorrem no córtex cerebral. Se a mente da criança está ligada ao medo e à sobrevivência ao longo do dia, ela não está pensando", afirmou.

O poder público só reage quando algo muito grave acontece. Após a morte de Maria Eduarda, o prefeito, Marcelo Crivella (PRB), chegou a propor blindar escolas em áreas de risco. A ideia foi vista por muitos especialistas como, no mínimo, insuficiente.

O secretário municipal de Educação, Cesar Benjamin, tem sido a voz pública mais presente, sempre criticando operações policiais, que ele vê como "desastradas, espalhafatosas e inúteis". Ele foi um dos primeiros a acusar a polícia de ter matado Maria Eduarda, o que uma investigação policial também concluiu. O secretário da Segurança, Roberto Sá, disse que operações serão revistas.

Agora, a Secretaria de Educação vai organizar um curso do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para ensinar educadores a reagir diante de episódios de violência.

Pela cidade há diversas iniciativas de escolas que tentam reagir a isso tudo. Na Maré, três professores criaram um aplicativo com o qual os alunos podem recuperar o conteúdo das aulas perdidas.

Em Paciência, na zona oeste, onde há tráfico e milícia, o professor de música Roberto Ferreira, 56, reúne os alunos em um corredor da escola para tocar e cantar enquanto os tiros acontecem lá fora.

"O que a gente não pode fazer é se render", diz Isadora, diretora na Maré. "O problema não é só tiroteio, é a falta de estrutura geral. Na favela, não tem nem sequer uma praça para a criança brincar. A escola, então, passa a ser ainda mais importante, passa a ocupar esse lugar. Não estamos aqui só para ensinar conteúdo, mas para fazer as crianças imaginarem que há um mundo além da favela".