Visita domiciliar pode reduzir mortalidade neonatal e ajuda a identificar doenças em crianças
Em um pequeno terreno no bairro Senador Hélio Campos, na periferia de Boa Vista (RR), Amanda Oliveira, 22, vive com o marido, Iago, e a bebê Cecília, de seis meses. A cada 15 dias, a família recebe a visita de Josiane de Jesus para garantir que a pequena possa atingir seu maior potencial de desenvolvimento quando adulta.
A visita está inserida no contexto do Família que Acolhe, programa municipal voltado para a primeira infância (0 a 6 anos), fase crucial para o desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social das crianças ao longo da vida.
A cidade, conhecida como “capital da primeira infância”, abriga um dos programas voltados a esse público. Um dos pilares é a visitação domiciliar, que acompanha as mães desde a gravidez até o início da educação formal das suas crianças.
Para Amanda, que não tem uma rede de apoio fora de casa, os conselhos e auxílios foram essenciais para afastar seus medos durante o pré-natal, o puerpério e agora, durante os primeiros meses da vida da primeira filha. “É preocupação o tempo todo, tudo me desesperava. É importante ter quem acionar”, diz.
As visitas têm como foco a criação para além da mera sobrevivência da criança, não só no seu estado de saúde físico, mas no ambiente familiar e como isso pode afetar a saúde mental e a educação.
“Já aconteceu da gente fazer o exercício de pedir para uma mãe olhar nos olhos do seu bebê e ela começar a lacrimejar e dizer: ‘eu nunca fiz isso’, porque a preocupação é a sobrevivência da criança”, diz Andréia Neres, secretária de Projetos Especiais da Prefeitura de Boa Vista. A alta frequência do programa, que também realiza encontros de grupos das participantes, também garante preferência para que as crianças consigam vagas nas creches municipais.
A metodologia usada no programa foi desenvolvida pelo Centro de Desenvolvimento Infantil da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) com base em um estudo da Jamaica, na década de 1970, para a promoção da chamada “parentalidade positiva”.
As visitas têm um componente de escuta dos problemas da mãe e da criança e de atividades para fortalecer a interação por meio de brincadeiras, afirma Alexandra Brentani, professora associada do departamento de Pediatria da USP e diretora do centro.
“A ideia é ajudar os pais a entender a importância da primeira infância. Muitos não têm essa ideia de como os primeiros anos de vida são importantes para o indivíduo e não sabem exatamente como promover o desenvolvimento da criança”, afirma.
Uma pesquisa feita pelo centro e ainda não publicada analisou um grupo de crianças que fizeram parte do programa em Roraima comparadas com crianças que não receberam a visitação e identificou que as visitas tiveram um impacto não só na redução de casos de mortalidade neonatal, como também melhoraram o desenvolvimento em termos de cognição, linguagem, desenvolvimento motor e emocional.
Estudos anteriores já mostraram que políticas públicas focadas na primeira infância têm o potencial de promover grandes mudanças sociais e econômicas. Uma pesquisa do americano James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, concluiu que cada dólar gasto pelo governo com uma criança na primeira infância trouxe um retorno de 7 dólares.
No âmbito federal, o programa social que tem como um dos eixos a visitação é o Criança Feliz, que atende 25 unidades federativas —Minas Gerais e Santa Catarina não aderiram ao programa— e 2.998 municípios. Os estados que aderem recebem recursos do governo para apoio técnico aos municípios.
Hoje, o Criança Feliz— criado no governo Temer e mantido pelas gestões Bolsonaro e Lula— passa por um reordenamento para se tornar uma política pública, com metas e impactos, de acordo com Elias Oliveira, diretor do Departamento de Proteção Social Básica, da Secretaria Nacional de Assistência Social, ligado ao MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome). A expectativa é que o processo seja concluído até o ano que vem.
Procurado, o governo do Estado de Minas Gerais afirmou que o estado encaminhou ao Conselho Estadual de Assistência Social, em 2017, a proposta de adesão, mas o Conselho deliberou pela não adesão. Por meio de nota, diz ainda que solicitou em maio de 2024 ao MDS, diante do reordenamento, informações quanto à abertura de prazos e procedimentos para adesão de Minas Gerais e para novas adesões de municípios, mas que não houve retorno do MDS quanto à solicitação. A Secretaria da Assistência Social, Mulher e Família de Santa Catarina não respondeu até a publicação da reportagem.
Um estudo publicado em 2022 que avaliou os impactos do Criança Feliz em mais de 3.000 crianças em 30 municípios de seis estados (BA, CE, GO, PA, PE e SP), não teve os resultados esperados. A pesquisa não observou impacto sobre estimulação, interações responsivas ou atributos psicológicos das crianças.
Os autores ressaltam que a pandemia afetou as características do programa, que passou a contar com encontros virtuais, além de desafios de implementação, já presentes em 2019, como complicadores. Mas, de um ponto de vista mais amplo, afirmam que o programa “teve sucesso em colocar a primeira infância e, especificamente, a promoção do desenvolvimento neuropsicomotor, na agenda nacional da cidadania.”
Impactos individuais
Na cidade de Trairi (CE), a 125 km da capital Fortaleza, Juliana Paixão, 35, mora com seus três filhos, de 9, 7 e 3 anos, que passaram pelo Padin (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil), programa da Secretaria de Educação do Ceará de visitação domiciliar.
A visitadora bateu à sua porta, pela primeira vez, em 2016. “Chegou uma senhora que, no começo, me incomodou, é uma pessoa que eu nunca tinha visto na vida. Mas já na 5ª visita, quando ela batia no portão, meu filho mais velho, Pietro, já corria para atender”.
Ela foi a primeira pessoa que notou que havia algo “diferente” em Pietro. Marcou uma consulta no neurologista para a criança, e, assim, veio o diagnóstico de autismo não verbal. “Ela ensina a mim como dar responsabilidade a criança, mas sem explorar o direito dela”, conta.
Luana Amaro Maruai, 23, mãe de Laysa Maruai, 2, moradora da comunidade indígena de Vista Alegre, no município de Boa Vista, aprendeu, com o programa, a conversar com a filha.
Para acessar a comunidade, que recebe visitas em grupos, é necessário atravessar o rio Uraricoera através de uma balsa, cujo funcionamento é irregular. Apesar do empecilho, as facilitadoras do programa sempre encontram, do outro lado, famílias animadas para os encontros.
“Aprendo quando elas dizem que a gente tem que dar atenção e conversar com a criança. Eu percebo que quando falo sem brigar e gritar, ela entende e respeita mais do que quando falo na ignorância”, diz Luana, grávida de seis meses, que quer adotar os ensinamentos para o próximo filho.
Lislaine Fracolli, professora em saúde coletiva na USP e especialista em atenção maternoinfantil e parentalidade, diz que o papel da visitadora é o de entender a realidade da família, oferecer a perspectiva de um melhor lugar e definir um padrão exequível, com a possibilidade material que a família tem.
Segundo ela, as visitas são uma forma de reduzir as “marcas da desigualdade”. “É uma forma da gente diminuir o ‘gap’ [lacuna] para que a criança chegue na creche sem tantas marcas da desigualdade, sem tantas desvantagens, em relação a outras crianças de escola particular.”
A série Primeira Infância é uma parceria da Folha com a ONG Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
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