Vitória põe 71% das crianças de 0 a 3 anos em creches
Quando a professora Elisângela Ferreira, 38, e o marido Jeneci Ferreira, 39, precisavam trabalhar no mesmo horário, seus filhos Bernardo, 5, e Elisa, 4, ficavam com uma vizinha. Elisângela precisava pagar, mas não era apenas isso que a incomodava. “Eles estavam aprendendo o que lá vendo televisão?”
Há dois anos, eles entraram em uma creche pública em tempo integral em Vitória. “Não é só babá, queria que eles fossem acolhidos com instrução. É isso que faz crescer.”
Com 71% das crianças de 0 a 3 anos em creches, Vitória, com 363 mil habitantes, é a capital com maior índice de matrículas nessa etapa. A média nacional é de 27%, segundo levantamento do TC-Educa, da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil e do Instituto Rui Barbosa, com dados de 2016.
O sistema monitora as metas do Plano Nacional de Educação, que prevê que, até 2024, 50% das crianças dessa faixa etária estejam em creches. O levantamento mostra que só Vitória, São Paulo e Florianópolis alcançaram esse índice.
Uma das estratégias usadas pela capital do Espírito Santo foi a tecnologia. Até 2013, as matrículas eram feitas diretamente nas creches, e as vagas eram distribuídas por sorteio —sistema que podia ser burlado e que ainda é utilizado em outros municípios.
Agora, há um cadastro único em que os pais se inscrevem e podem ver o andamento da fila, o que traz transparência. São considerados critérios como morar perto, ter necessidades especiais e ter irmãos matriculados na unidade desejada. O cadastro também melhorou o planejamento para construção de novas creches. São priorizadas áreas que têm mais demanda, reduzindo, por exemplo, a interferência de vereadores por unidades em seus bairros.
Além disso, especialistas apontam também a continuidade das políticas para educação ao longo do tempo. Diversas gestões participaram dos projetos de desapropriação de terrenos e construção de unidades. “Vitória é uma ilha espremida entre mangue e morro. Não havia muito espaço para creches, foi preciso desapropriar terrenos, e isso leva tempo, não se resolve em um mandato”, diz a professora Vânia Araújo, da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), que foi secretária de Educação (2009-2012).
“O município sempre investiu em formação de professores e expansão da rede física”, diz Sumika Freitas, do Fórum de Educação Infantil do ES.
Uma das chaves para o bom funcionamento das creches de Vitória é essa participação da comunidade e dos pais.
Cada escola tem um conselho, formado por representantes dos professores, funcionários, pais e líderes comunitários. Eles ficam responsáveis por gerir os recursos enviados pelo município e participam de avaliações anuais sobre a qualidade das escolas. A prefeitura investe quase 30% da receita em educação, mais do que o mínimo exigido pela Constituição, de 25%.
A prefeitura diz que Vitória tem hoje 89% das crianças de 0 a 3 anos matriculadas —e meta de chegar a 92% em 2021. O número é maior que o do TC-Educa porque o levantamento dos tribunais é menos atualizado e considera toda a população de 0 a 3 anos, enquanto o da prefeitura contabiliza só crianças em busca de vaga.
Por essa metodologia, a capital paulista tem 84% da demanda atendida. A redução do déficit em São Paulo nos últimos anos se deve às vagas em creches conveniadas.
Já as 50 creches municipais de Vitória são todas ligadas diretamente à prefeitura. Elas dão atendimento tanto à população de baixa renda quanto às classes média e média alta. Segundo o Censo Escolar de 2017, 86% das vagas são oferecidas pelo município, e 14% são privadas. Em SP, a situação é praticamente inversa: 83% das crianças estão em creches privadas, e 17% nas públicas.
Em média, há um profissional para cada grupo de 6 a 7 crianças. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, todos os professores da educação infantil têm formação superior e 93% têm, pelo menos, especialização. Eles recebem salário equivalente ao dos professores das outras etapas, o que não é regra pelo país.
Mas ainda há desafios no sistema. A educação integral, por exemplo, atende a 11% das crianças das creches —a prioridade é para aquelas em situação de vulnerabilidade. As outras são atendidas em meio período. Além disso, com a crise econômica, diretores reclamam que falta dinheiro para comprar livros e brinquedos.
Pesquisas têm apontado a importância das creches no desenvolvimento cognitivo infantil. É o que defende o Nobel de Economia James Heckman. A creche pode ajudar a combater desigualdade social, pois, nessa idade, já se nota diferença no desenvolvimento entre crianças de famílias pobres e ricas, já que elas não têm acesso a estímulos iguais.
Além disso, ter onde deixar os filhos permite que a família possa trabalhar —especialmente as mães. Pesquisa do IBGE de 2014 mostrava que 64% das mulheres com filhos em creches estavam empregadas —contra 41% entre as que não contavam com o serviço.
Em relação a outras etapas do ensino básico, creches são mais caras, já que bebês precisam de mais cuidados. Além disso, a demanda é pulverizada. “As creches precisam estar próximas ao local de residência ou trabalho dos pais. Então é preciso encontrar muitos imóveis, espalhados pelos bairros”, diz Marcelo Marchesini, professor do Insper.
Também é difícil ampliar o atendimento mantendo a qualidade da educação. “Em geral a sociedade compreende que o mais importante é a criança estar dentro da escola. Mas é importante olhar para o que acontece dentro das creches. O início da vida impacta toda a formação”, diz Cisele Ortiz, do Instituto Avisa Lá.
A continuidade da gestão pública é vista como ponto essencial para a experiência de Vitória servir de modelo para outras cidades. “Nenhuma gestão que entrou desconstruiu o que outra fez. Não são planos de governo, são políticas de Estado”, diz a atual secretária, Adriana Sperandio.
Já o software do cadastro único desenvolvido pela prefeitura está disponível para outras cidades que queiram o sistema. Algumas, como São Paulo e Rio, já adotam um cadastro próprio semelhante.
“Isso precisa ser adotado em todos os municípios. É um absurdo, com a tecnologia que temos, não estar universalizado”, diz Maria Fernanda Nunes, especialista da Unirio.