Interesses privados jogam contra a ascensão de TV pública, defende tese

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Para autor de tese, é preciso rever a legislação e estabelecer novas regras

Na década de 1950, as imagens em preto e branco que tornavam mais acessíveis os ídolos do rádio ocupavam lugar de destaque no Brasil. A novidade, porém, já nascia comercial, pelas mãos do jornalista Assis Chateaubrind. O curioso é que nesses 60 anos de criação da TV, o Brasil não conseguiu estabelecer um sistema público de comunicação, o que dificulta a manutenção da TV pública no país. Na opinião do autor da tese “A TV Pública no Brasil”, Nordahl Christian Neptune, para se chegar a uma televisão capaz de atender mais aos interesses sociais que comerciais, é preciso rever a legislação e, principalmente, estabelecer regras, já que no Brasil os interesses foram elaborados sem elas.
 
Para o orientador da tese, professor Adilson Ruiz, a falta de regras desde a origem da TV no Brasil faz com que os detentores dos canais não admitam ser controlados por uma legislação. Ruiz acrescenta que na Europa não há qualquer possibilidade de isso acontecer. Um exemplo é a proteção à produção independente, cujos produtos devem ser comprados pelas emissoras de TV para veicular. No Brasil, as emissoras comerciais tentam manipular, dizendo que isso poderá interferir no interesse público. “Eles dizem que é ditadura. Preferem repetir um filme a semana inteira à exaustão, pois, apesar de não terem produto audiovisual para preencher a grade, não adquirem trabalhos de produtoras independentes pelo fato de essas gerarem um novo mercado”, explica Ruiz.
 
Ao comparar o desenvolvimento da TV pública no Brasil ao de outros países, Neptune observa que na Europa e nos Estados Unidos a TV já nasceu pública, enquanto no Brasil os interesses comerciais e de poder ainda emperram as discussões sobre políticas voltadas para o campo público da televisão. “Na Europa, a TV comercial aparece somente na década de 1980 e mesmo assim a pública não perde seu espaço”, compara Neptune.
 
Ele pontua que, apesar de começar a ser discutida com a participação de diferentes setores da sociedade, a TV pública ainda não contempla uma excelência na grade de programação. Mesmo com a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) durante o 1º Fórum de TV Pública, em 2007, os canais públicos ainda conquistam de forma tímida seu lugar na grade. Segundo o orientador Adilson Ruiz, a criação da EBC é um marco importante na história da TV pública por contar com um conselho de personalidades de diversos setores da sociedade. A empresa tem em seu bojo a NBR, que dá conta do dia a dia da Presidência da república, mas tem também a TV Brasil que tem uma programação autônoma supervisionada por seu conselho.
 
De acordo com Neptune, nos Estados Unidos e em toda a Europa, a TV surge pelas mãos da iniciativa pública, com regras estabelecidas e aperfeiçoadas ao longo do tempo, mas no Brasil, a origem da TV diferencia-se do resto do mundo. Ele lembra que no país, a primeira TV educativa nasceu em 1967, na Universidade Federal de Pernambuco, mas, apesar dos avanços, muitas delas ainda estão atreladas a interesses do governo. Para o orientador da tese, Adilson Ruiz, naquela época não havia entendimento de que a televisão é um serviço público. “Sem normas e regras, existe uma TV comercial absurdamente verticalizada. Este fenômeno só tem no Brasil”, pondera Ruiz.
 
O professor acrescenta que tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, as questões referentes à TV pública estão legisladas, mas no Brasil, a legislação não é suficiente para organizar um sistema de comunicação pública. Na Europa, segundo o orientador, a TV comercial ganha espaço somente na década de 1980, mas as emissoras públicas mantêm papel importante no sistema de comunicação. No Brasil, a discussão de uma TV com interesse público começa a ter força somente perto da década de 1990, com a Constituição Cidadã de 1988, quando o conceito de cidadania começa a ser discutido.
 
Para Neptune, a discussão é dificultada pelo fato de os próprios legisladores não conseguirem definir os conceitos de TV pública e TV educativa. “Hoje, esses conceitos estão mais estabelecidos. Mesmo assim, precisam ser intensificados”, pondera.
 
Obsolescência
 
Com a mudança do sistema analógico para o digital, não somente a tecnologia está obsoleta, mas também a legislação é ultrapassada. Muitas emissoras comunitárias enfrentam dificuldade para converter o sistema por falta de recursos, segundo Neptune. A TV Brasil, inclusive, ainda está adequando seu parque tecnológico, de acordo com o pesquisador. 
 
As regras que dizem respeito ao financiamento precisam ser revistas, pois, segundo Neptune, para chegar num nível de excelência, entre muitos gargalos a serem preenchidos, a TV pública precisa ser financiada não apenas pelo governo, pois busca recursos para se atualizar e aprimorar suas produções. Outra dificuldade de algumas emissoras que têm o governo como principal financiador é a propriedade na escolha de sua programação, sem estar atreladas aos ditames do governo. As possibilidades de apoio, em sua opinião, precisam ser estendidas a empresas interessadas em apoiar produções culturais.
 
Para Ruiz, é preciso distinguir a veiculação de produto da veiculação do nome da empresa como um dos apoiadores de determinada produção. “Se uma empresa com responsabilidade social, com foco na proteção ambiental, tem interesse em apoiar uma produção com conteúdo ambiental, qual o problema de ter seu nome incluído nos créditos entre um dos apoiadores? Não estaria veiculando a imagem de um produto, mas sim da empresa”, explica Ruiz.
 
Segundo Nordahl, as produções poderiam receber recursos também de órgãos de cultura federais, como a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Agências de fomento também poderiam entrar na equação financeira de uma produção, na opinião de Nordahl.
 
Ruiz explica que assim como a TV Cultura, de São Paulo, a EBC tem como mantenedor o Estado, mas tem autonomia de gestão por meio de conselho próprio. “Há na TV Cultura momentos em que o Estado interfere demais, mas ela reage mais porque tem a administração pública de não responder aos mandatários. No Brasil ainda se misturam os interesses públicos, privados e políticos. Essa é uma cultura que vamos demorar para superar”, lamenta.
 
O professor acrescenta que a TV paga é mais cara no Brasil porque não há predisposição para investimentos. “O capital é mal-aplicado. O mercado não cresce porque os pacotes são caros, quando na verdade, quanto maior a demanda, menor teria de ser o preço. Se tivessem pacotes de TV paga a preços acessíveis ao grande público, não teriam uma base de 10 milhões, mas de 50 milhões de espectadores. Mas eles querem ganhar dinheiro com zero de investimento”, acentua Ruiz.
 
Para Ruiz, mais que avançar no conceito de cidadania, é preciso enfrentar interesses de poder para que o espaço do sistema comercial seja colocado na dimensão que deve ter. A legislação, porém, não é suficiente e, quando se tenta melhorá-la, as entidades investem fortunas em seus departamentos jurídicos para embargar questões pertinentes ao interesse público. Um exemplo disso é a campanha empreendida por uma concessionária privada contra a Lei 12.485/2011, que criou o Serviço de Acesso Condicionado (SeaC), o qual obriga as emissoras que operam a TV paga a veicular, três horas e meia por semana, produções independentes brasileiras. “Fiz parte da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e vivenciei momento em que a representação dos empresários se retirou da organização na tentativa de frear a Confecom, que só não teve êxito por não ter conseguido a unanimidade das suas entidades”, lamenta Ruiz.
 
Fonte: Maria Alice da Cruz, Jornal da Unicamp